No quarto- capítulo 1
No térreo do condomínio, mais precisamente
no salão de festas, estava sendo servido a todos os convidados um churrasco
preparado somente pelo pai do aniversariante daquele dia. O aniversariante era
Lucas Travessa, que era moreno, e não é todo dia que o primeiro nome que
aparece no texto não pertence ao protagonista da história. Este, ainda não
apresentado, estava no seu quarto esperando o interfone da cozinha tocar e ser falsamente
surpreendido, em meio a um alegre “se você insiste”, por Lucas o convidando a
descer para a festa.
Estavam num domingo quente e movimentado,
perto do horário em que todos se despedem de alguém e correm para a parada de ônibus
mais próxima e ficam parados por bastante tempo esperando o motorista chegar.
Degradê, como o chamavam pelo tom de pele diferente das pernas do resto do
corpo, soube, semanas atrás, que Lucas levaria todos quem convidasse a um
passeio no zoológico da cidade, e queria ir junto, pois ele adorava animais. Degradê,
que sempre teve o cabelo preto, tinha sete anos quando trocou o primeiro olá
com Lucas, foi ele mesmo quem notou a cor levemente mais escura em suas pernas.
Lucas já morava lá quando Degradê se mudou pro prédio, e logo se tornaram
amigos e futuramente colegas de aula, com Lucas o ensinando a se balançar num
daqueles galhos longos e caídos, cercados de folhas secas sem cor, e conseguir
saltar sobre a piscina das crianças sem se molhar. A mãe de Degradê, depois de
perceber as piadas em relação à tonalidade das pernas do filho, inventou uma
história e o fez começar a usar uma meia-calça preta quando ia ao colégio e
saía de casa, mas, caso quisesse, ele podia tirá-la quando fosse se deitar. Ele
sempre dava um jeito de rasgá-la nos seus pulos sobre a piscina.
Degradê era muito novo sentado na cama
aguardando a ligação do seu amigo. Enquanto fazia isso recostado na parede de
trás da cama, lia algumas revistas que seu pai comprara ou mexia no celular:
aplicativos e sites para crianças da sua idade, doze anos e meio. Depois de
várias idas ao banheiro e constantes trocas de roupa, uma mania sua, ele ouviu
o barulho de um ônibus chegando, mas não era um daqueles públicos, mas sim um
alugado pelos pais de Lucas, para pegar quem estava na festa e entregar no
zoológico. Vendo o motorista conversar com o porteiro do condomínio antes de
entrar, ele entendeu que sua amizade com Lucas não existia mais, talvez há um
tempo e ele não tivesse percebido, e que não iria com todos os convidados ao zoológico,
porque ele não era um.
Indignado
por não chegar a uma resposta do porque seu interfone não tocou da cozinha,
Degradê teve certeza de que entraria naquele ônibus de um jeito ou de outro.
Num papelzinho mal rasgado, escreveu “Nickolas Carvalho(Degradê)”, com “convidado
do Lucas” logo abaixo, como garantia, e já estava descendo as escadas até o
térreo. Ele aguardaria todas as crianças e adultos da festa entrarem e a porta fechar,
para só depois pedir que a abrisse novamente ao motorista, o qual possivelmente
não tinha a lista de nomes dos convidados com as fotos 3x4 de cada um do lado,
e se sentaria num assento perto da frente, para que ninguém o percebesse
infiltrado. Esgueirado atrás de um pilar, Degradê observou todos subirem no ônibus
e executou o seu plano.
Ele bateu na porta do ônibus com o punho
fechado:
- É da festa? – disse a motorista enquanto
abria a porta, (era uma mulher, não era o motorista, era A motorista, que, a
propósito, era tão bonita em tudo que despertava algo no centro dele. Degradê assustou-se
um pouco por não ter notado isso quando viu o porteiro falando com ELA) num tom
de voz que ninguém, exceto o menino, ouviu.
- Sim, sim. Juro que vim correndo. –
respondeu Degradê, que não estava mentindo, ele morava no oitavo andar e pareceu
que voou pelos degraus (não tinha tempo para pedir o elevador). – Entra –
respondeu a motorista.
Por sorte, ao subir com a porta fechando atrás
dele, bateu de olho com um assento perto da motorista e longe dos outros e se
sentou ali mesmo, sem nada no colo, somente com o papelzinho no bolso da calça.
Ele o apanhou e escreveu o nome
que viu no crachá da motorista: Ana.
Ele não avisara sua mãe quando saiu, nem
comeu nada, nem pegou uma chave, nada, a possibilidade de não ir ao zoológico
hoje fez com que se esquecesse de tudo que fazia diariamente, menos a
meia-calça.
No zoológico- capítulo 2
O
passeio não durou muito. Dez minutos do portão do condomínio até o portão do
zoológico não era nada comparado ao tempo que demorava viajar de carro até o salão
de bronzeamento natural que sua mãe o induzia a ir todo começo de semana de
escola. Estes encontros forçados duraram um ano e foi o bastante para algumas
manchas de pele aparecerem nas costas dele. Sua mãe se culpa tanto disso.
Os pais de Lucas provavelmente já tinham
pagado todos os ingressos dos convidados para entrarem no zoológico, pois,
assim que desceram do ônibus, passaram reto pela caixa e seguiram à seção dos
bichos, para qual se devia passar por um arco branco alto, como o do Jurassic
Park, com um letreiro vermelho escrito “ANIMAIS” no topo. Numa das pernas do
arco, estava uma mulher, possivelmente trabalhava como guarda, contando os
convidados que estavam em fila. Degradê não precisou pensar muito para bolar o
que fazer.
- Ei! – gritou Giovanni Franco, um colega
seu, quando viu Degradê furar a fila na sua frente, agarrando-o e o virando pelo
ombro para ver seu rosto – Furão, volta pro final da fila!
Degradê quase caiu no chão com a força que
o outro pôs no seu ombro. – Calma aí! Eu só fui ao banheiro, o Carneiro até
guardou meu lugar. – o Carneiro era um colega seu também, conhecido pelo cabelo
enrolado.
- Cala boca, o Carneiro nem veio.
- Aí o problema é seu. – riu baixinho
zombando de Giovanni e se virou de novo.
- Punheteiro de merda, não era nem pra você
estar aqui, não sei porque o Lucas mudou de ideia – respondeu Giovanni puxando
ele pelo outro ombro dessa vez.
Degradê não entendeu essa da ideia do Lucas.
– O quê?
- É, você não tinha que estar aqui no zoológico!
– Aquilo não explicou nada pra Degradê, então ele voltou às piadas:
- Ah, zooLÓGICO que não era pra eu estar
aqui, quem vive aqui são os animais, tipo a vaca da tua tia. – fez um intervalo
para apreciar o rosto vermelho de Giovanni. – E, essa é a fila pro zoológico?
Pensava que era pra ir comer a sua mãe. – finalizou com chave de ouro a sua
onda de humilhação para calar a boca dele. Sempre foi ótimo com xingamentos.
Ficou tentando lembrar se tinha ofendido Lucas para fazer ele não o convidar ao
seu aniversário.
A
vez dele de passar pelo arco chegou e ele notou como a guarda era bonita,
estranhamente muito parecida com a motorista do ônibus:
- Vinte um...Vinte dois... – disse ela
tocando na ponta da sua cabeça quando ele passou. Aquilo despertou algo no
centro dele. Ele pegou o papelzinho rasgado e anotou o nome que viu no crachá
dela: Laura. Talvez pra procurar depois no facebook: entre todas as Lauras da
cidade a com a foto mais parecida com a guarda...e com a motorista de certa
forma. Isso era coisa de maluco.
Lucas ficou como último da fila conversando
com seus familiares e recebendo parabéns e quase não participou da sua própria
excursão quando foi barrado por Laura, que percebeu uma pessoa a mais do que
tem na lista de convidados que recebera. O problema logo foi resolvido com um “Moça,
eu sou o aniversariante” e a guarda teve de engolir que tinha errado a conta,
por algum motivo, sem nenhum questionamento.
Degradê achou melhor ficar na frente do
grupo de pessoas, longe da família do aniversariante. Era melhor ser encarado
diretamente por Giovanni Franco do que responder várias perguntas sobre porque
ele resolveu ir visitar o zoológico no mesmo dia e horário que Lucas tinha
combinado de vir com os convidados comemorar o seu aniversário.
Parecia que aquela retirada no zoológico se
basearia nas crianças caminhando pelo parque e parando de vez em quando para
rir dos animais excretando suas necessidades ou para comprar mais algodão doce/pipoca.
Degradê adorou tudo, as curvas e as formas e dobras e furos, todas as passagens
por todas as jaulas e habitats e atrações, exceto a última do dia: a dos
primatas.
No final da festa, ainda no zoológico,
quando a motorista já estava esperando eles voltarem, a guia anunciou a última
parada: o parque dos macacos. Todo o grupo correu até o limite de onde podiam
ficar e agarraram numa barra de ferro, que parecia mais um corrimão, e imitaram
o barulho dos macacos: U-UU-U, com as mãos na cabeça e no queixo. Enquanto pais
e filhos enxergavam os pulos dos macacos trapezistas e malabaristas, que pareciam
ser de circo, Degradê enxergou o pior naquele monte de bosta: no canto da
parede da qual todos estavam em cima, numa quina entre duas paredes, estava um
macaco sentado se masturbando para outros dois que estavam transando. A boca
escancarada do primeiro berrando e o corpo levemente inclinado para trás
apoiado apenas no traseiro mexeu com o centro do menino, trazendo o pavor de
estar presenciando algo que não estava permitido a ver; que não devia ser visto
por ninguém nem usado como tortura; algo que simbolizava o décimo primeiro
mandamento; que era impossível Noé ter deixado entrar na arca; que alguém devia
ter o impedido, tapado seus olhos quando mirasse-os para aquela cena, qualquer
criatura devia ter interferido, um humano ou um macaco. E os outros dois
virados para a parede provavelmente estavam morrendo de excitação um ao outro,
dois primatas não humanos, Deus podia saber que aquilo era a primeira relação
sexual que Degradê viu na vida, uma relação que nem da sua espécie era, e, se
fosse, era da sua espécie a milhões de anos atrás. Estavam um contra o outro,
com o de trás se contorcendo, abraçados, se é que existia isso no vocabulário deles.
Ele nem sabia se o que estava admirando era uma relação heterossexual ou homossexual,
e morria de medo de alguém abordá-lo pelo ombro e dizer pra ele.
Ele pensou nisso tudo em um
segundo e ficaria com um olhar de horrorizado por uma vida toda.
Na zoológico Parte II- capítulo 3
Quando finalmente ele saiu de transe e
virou o rosto, observou que não tinha passado nem dez segundos de quando olhou
pro canto da parede. Todos continuavam com o mesmo campo de visão: os macacos
presos nos galhos e correndo nas pontes de madeira das estruturas de madeira
que o zoológico tinha feito pra eles brincarem. Ou transarem. De repente a
falação e os gritos se encerraram para uma canção e um perfume de terra
preencherem o ar do zoológico. A música saia dos megafones, e o perfume parecia
ser exalado deles também, só não se sabia como.
Verde, vente;
Como a gente;
O macaco, o primeiro;
Apoiado no traseiro;
Verde,vente;
Como a gente;
Veio ver os animais;
Seu amigo, com seus pais;
Verde, vente;
Como a gente;
A mãe do seu amigo;
Você é um pervertido;
As vozes pareciam vir direto da terra do
nunca, das fadas, sabe, com o pompom nas sapatilhas. Ao procurar um megafone próximo
dele, acabou escorregando o olho e achando uma mata do lado da jaula dos
primatas, onde, entre os troncos das árvores, jurou ver duas mulheres verdes e
sensuais, muito parecidas com.... cheias de curvas no rosto até o tornozelo,
dançando grudadas, quase amarradas, virando o traseiro constantemente na
direção dele, o convidando fisicamente para a festa de aniversario das duas. As
vozes pareciam ser delas, porém, os seus lábios mexiam sem sincronia com a
letra da canção, o que confundiu Degradê. O garoto só foi atender o desejo
delas quando as duas já tinham desaparecido de sua vista, mas isso não o
desencorajou de procurá-las. Pareceu que ninguém tinha notado o garoto se
afastando do grupo, assim como não o tinham percebido invadir a multidão. Os
pais e filhos estavam paralisados com as mãos no corrimão. Os macacos também
cantaram pra eles.
O aroma de natureza grossa ainda impregnava
o ambiente, principalmente dentro do matagal antes habitado por ninfas verdes.
O chão da mata estava cheio de galhos pontudos virados pra cima que cortaram a
meia-calça dele, e possivelmente também as pernas e a sola dos pés das
mulheres. Talvez por isso elas tenham se distanciado: procurar onde banhar o
sangue, talvez...talvez. De certa forma, Degradê não queria que elas fossem da
cabeça dele, eram perfeitas demais pra ser, ele implorava que não fosse, que
pudessem ser tocadas. Onde antes elas se esfregavam bailando quase como uma só,
tinham partes da grama que eram mais fundas, como se tivessem sido pisadas,
isso encheu o coração e o centro dele de esperança de poder vê-las de novo.
Degradê era virgem, e era visível
que era verdade, pelo seu jeito magro e malicioso de ser, sua descrença a
tripofobia, não entendendo quem não gostava de olhar furos uns do lado do
outro. Naquela mata tinham muitos furos, principalmente no fim daquelas
espirais que vemos nos troncos, principalmente em desenhos animado. Ele chegou
num ponto daquele bosque que o cheiro de barro e solo aumentou e imaginou que
na verdade aquele fosse o fedor delas. juntas. não da mata em si. Talvez
estivesse alucinando por conta da visão dos macacos trepando na quina da “gaiola”
deles, e estas mulheres fossem a personificação da insanidade dele que cresceu
exacerbadamente depois de ter visto como um macaquinho é gerado, nem que fosse
um bebê humano, naw, isso ele já sabia.
Ele teve uma ideia. Antes, ele encontrou as
mulheres quando procurava um megafone próximo dele. Ele faria o mesmo agora.
Com os pés afundando na grama irregular e pegajosa e fertilizante, Degradê girou
os olhos caçando o megafone e sem querer rodou o corpo junto, completando uma
volta inteira sem andar um centímetro de distancia de onde estava.
Inesperadamente, foi isso o que ele avistou lá longe: um megafone lá no alto de
um poste imenso, era como se Deus quem gritasse os trovões através daquele
megafone. E no mesmo momento que o viu,
a música retornou ao ar, entupindo-o e respirando-o. Era um sinal e ninguém
podia dizer que não. Degradê correu desviando dos troncos das árvores até o pé
daquele gigantesco poste e finalmente reencontrou as ninfas verdes, roçando,
esfregando seus corpos à trave, que parecia mais uma coluna de metal. Quando as
viu, teve certeza de que eram a motorista e a guarda brincando com seus hormônios,
e as duas pareciam a mesma pessoa. Cada uma levantou um braço na direção dele e
cada uma moveu o dedo indicador, provocando-o e o seduzindo. Depois disso, só
Degradê e Ele podem nos contar.
No quarto Parte II- capítulo 4
O odor de folha e de terra úmida dissolveu
junto com o sonho onde participava de um ménage com forças da natureza NA
natureza.
Degradê acordou sentado na privada,
recostado na tampa levantada desta e sem a meia-calça preta. Quando foi se
inclinar pra frente suas costas custaram desgrudar da tampa nojenta e gosmenta.
Ele não usava calças e tinha papéis higiênicos ao seu lado, na beira do balcão
que sustentava a pia do banheiro, que possivelmente estava trancado. Ele
demorou a se levantar, refletindo e sentindo saudades das mulheres verdes com
quais passara um bom momento juntos. Era cheiro de banheiro e não de terra, e
não tocava nenhuma música, só ele se tocava. Não conseguia acreditar que tudo
tinha sido um sonho pervertido e erótico, que tinha chegado a esse nível.
Pensando bem, nem sonho tinha sido, mas sim uma grande fantasia sexual, uma historinha,
para passar o tempo livre. Nem tinham mais zoológicos na sua cidade. O último
que tentaram abrir durou poucos meses, pois os visitantes baixaram muito depois
que Giovanni Franco foi morto com uma chifrada de um carneiro bem na boca do
estômago. Obviamente não demorou muito para surgirem boatos de um espírito maligno
habitando aquele zoológico.
Depois de se limpar, pôr um calção manchado
e puxar a descarga de mentirinha, Degradê voltou ao seu quarto triste por
continuar virgem, e sabendo que nunca conseguiria achar outras mulheres
vegetais. Quando fechou a porta, ainda se recuperando de todo o lance do zoológico
e com a cabeça ainda muito longe do mundo real, notou as revistas pornôs do pai
jogadas na cama (como foi que ele se esqueceu de escondê-las?) e o computador
aberto no facebook. Ele era mesmo um pervertido imoral. Aproximando-se da tela como
se tivesse vergonha, sentiu o cheiro de churrasco lá embaixo.
Na frente do monitor, estavam papéis
higiênicos amassados e parecendo “secos” e “finos”, nos quais não teve coragem
de tocar. Na tela, estava aberto um álbum de fotos de uma mulher no facebook:
Era uma mulher adulta, uma senhorita, não uma idosa, já tinha algumas linhas
pelo rosto pouco caído. Era bonita. A mulher lhe era familiar...sim...eram
elas...era ela...tinha o rosto idêntico aos da motorista e da guarda, e aos das
mulheres com as quais ele se encontrara na mata. Degradê voltou a página para o
perfil dela. Ele leu o nome dela: Ana Laura...Travessa. Sim. Era a mãe de
Lucas. Ele amava a mãe dele. Prestava homenagens à ela e tirava fotos dela
quando podia. Seu perfil no facebook estava salvo nos favoritos dele. Esse era
o motivo dele não ter sido convidado a descer para ir com todos ao zoológico.
Lucas Travessa descobrira que Degradê só era seu amigo para olhar a sua mãe.
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