Cutuques no solo


- E não te esqueças, meu filho, de se comportar e não sair pra fora de casa à meia-noite e de deixar a porta bem chaveada e valentona tanto interiormente quanto exterior. Como a minha mãe me contou e como a mãe dela contou pra ela, e como eu sempre te digo e para o seu pai: “Do céu escuro lá de cima, pelo meio e espaço vago entre as diversas estrelas, todas as noites despencam braços sem cotovelos nos campos e daqui debaixo resolvem retornar somente com quaisquer criaturas que se descuidaram e mantiveram-se acordados depois da hora de dormir, tanto homens quanto animais” – repetiu para o guri pela terceira ou quinta vez aquela mesma frase a mãe, querendo que aquela regra se fixasse bem dentro da cachola dele, para que nunca saísse de onde se estalasse. E nunca a mãe perdesse seu filho.

- E como eles acham os homens e animais, se braços não têm olhos? – retrucou o guri.

- Eles procuram pelo tato, tocando o chão e as paredes. Dedilhando tudo – respondeu a mãe sem muito esforço e suor para esclarecer a mente do filho.

- E por que eu não os ouço dedilhando o solo, então? – o guri revidou pela segunda vez, querendo saber de tudo com um tom de desafio.

- São braços, não blocos de carnaval. – a mãe respondeu seca a última pergunta daquela conversa de boa noite. E saiu do quarto.

Aquela historinha nunca assustara o filho, ele não acreditava no que nunca viu.

Do lado de dentro do quarto do guri, agora sem luz, não lhe era nem um pouco nítido o som dos pingos de chuva que caíam do lado de fora da janela, por toda região aonde ele e seus pais dormiam, no casarão duma fazenda, o que estressava o guri, que preferia e optava por cair no sono ao som de um aguaceiro barulhento.

Depois de alguns longos reclamos e pedidos inocentes do guri contra as paredes da casa-grande, que as mesmas não deixavam os salpicos de água fazerem o seu comum som de pingar, o guri pensou na solução mais simples de se ajeitar a situação e abriu a veneziana da janela, e logo empurrou o vidro pro lado, deixando a chuva entrar e sonorizar no seu próprio rosto, na testa. E finalmente, ouvindo o barulho aliviante para os seus ouvidos e psicológico.

Ajoelhado à frente da janela, do céu preto e enfeitado com os milhares de estrelas, ele observou vir à sua direção tanta água quanto há no mar, o que o deixou com o rosto irritado do frescor frio que o chuvisco consigo trazia, e o fez virar o olhar ao mar que era possível ver das janelas do segundo andar do casarão, e encarou o Oceano Atlântico, que jogou, por uma corrente, uma brisa quente e relaxante à pele do guri.

No ultimo sopro do mar, ele enxergou lá longe no oceano, aonde não era mais raso pra ninguém e o recife descia até onde a areia ficava azul-escura e intocável, uma baleia, que ele sabia que estava bem longe de casa, cantando submersa no mar constantemente borrifado, sob a chuva que atrapalhava o encoste do brilho da lua nas suas costas e no espiráculo delas.

Na cauda e na nadadeira de trás do corpo do animal, no meio do céu negro, iluminava um fraco feixe de luz apontado à baleia; parecia vir de uma lanterninha, que logo se apagou do escuro com a aproximação do animal à luminosidade. “BALEIA À FRENTE!”, o guri ouviu lá de atrás do mar, da sua janela totalmente aberta, de uma voz rouca e fina, e com um pouco de atenção ao horizonte seco de início de madrugada, ele reconheceu um navio grande de altura com um casco gordo de largura. Do segundo andar, viam-se três mastros, porém, com apenas duas velas estendidas ao vento. No exterior, o barco era feito de madeira clara e no interior de madeira escura. Possivelmente algum marujo avistou, com a sua lanterninha, a baleia de cima do navio e quis avisar aos outros marinheiros.

Na mesma navegação com os olhos pouco mais tarde, ainda com a testa sob o aguaceiro até lá repentino, de joelhos vermelhos doídos e observando a baleia imergir no mar com um só mergulho e se afastar do navio, que já se distanciara de perto da praia e ido em direção ao mar-aberto fazia um tempo, o guri escutou um barulho sinistro vindo de dentro da região do sítio donde sempre esteve, similar a algo se abrindo sozinho. O som estabeleceu-se em um apavorante roído, quase enferrujado, para àquela hora da madrugada, e fez com que o guri abaixasse a testa, agora encharcada, até o iniciozinho de baixo da janela, somente deixando os olhos por cima do peitoril à vista pra noitada.

O barulho já havia passado minutos atrás e não acordado nenhum adormecido do casarão, ideia que o guri torcia para acontecer, mas não a houve. Com só os olhos arregalados e sem sono às mostras, ele penetrou-os, furtivamente, nos locais da fazenda que estavam ao seu alcance visual e lá procurou algo suspeito, até mesmo braços sem cotovelos: no pátio do sítio, verde-escuro e grande, ele não achou nada, muito menos em cima ou no meio ou nos galhos do limoeiro sobre a grama do local; a garagem permanecia fechada pelo portão com o caminhão do pai e a caminhonete da família, esta última tinha as rodas, as escapes e todo o resto inferior dela sujo de terra, pós a trilha no mato que o pai a usou dias atrás e não quis enxaguá-la com a mangueira; depois, de lá de cima, mirou o olhar na entrada da fazenda, ele aguçou os sentidos, os que tinha, e não tinha, para prestar atenção se tinha algo fora do seu respectivo lugar no portão principal do rancho, só enxergou um poste, pra fora do portão, aceso na estrada, quando não era mais terreno do seu pai; por fim, agora preocupado e medroso com o barulho que não sabia de onde havia sido originado, o guri virou o rosto já úmido aos campos de plantações do lado da fazenda, onde morcegos de longas asas, que quase não eram possíveis de se verem, sobrevoavam; e o chalé dos trabalhadores que serviam ao pai. Não encontrou ali nada de suspeito.

Até o momento aterrorizado com o sonido misterioso de minutos atrás, o guri não tinha mais coragem e determinação para continuar com os olhos à vista pelas venezianas abertas, e nem mais de procurar braços em todos os cantos do sítio; e cansado ele decidiu ir dormir antes que um membro o pegasse pela cintura e o levasse consigo ao inferno. O garoto viu que tinha chegado um tempo de estiada na região e, triste, moveu sua testa agora seca para dentro do quarto, longe da janela. No instante que ele pôs o vidro para baixo e puxou a veneziana para a ponta da janela, uma luz branca, um flash de luz de curto prazo, atravessou o vidro e as frestinhas da veneziana, deixando a sombra das partes fechadas da mesma na pele do guri, que ficou mais pálida e esbranquiçada que o recém clarão, e escurecendo tenebrosamente o quarto; e logo em seguida um barulho estrondoso estourou no céu, fazendo o coração dele bombear forte e as veias transportarem sangue para o órgão como nunca o transportaram por aquele jovem corpo antes. O menino nunca tomara um susto tão traumatizante como aquele, o que acelerou tudo do seu organismo.

De costas para o chão e com a face virada para a janela há poucos instantes fechada, ele respirou fundo e viu o céu retomar a cor escura de novo. E quando ele conseguiu ver, pelas frestinhas da veneziana, as estrelas ressurgirem novamente àquela noite, também escutou surgir um som diferente dos últimos que escutara, dez vezes mais terrível, que veio crescendo no solo: a noite se calou e fez um silêncio monótono absoluto; os ruídos dos quatro cantos do mundo sossegaram-se cada um de uma vez; as árvores pararam de ser sopradas pelas ventanias que agora não mexiam um arbusto. Foi depois que tudo ficou quieto e calmo para todos que o guri ouviu os dedilhares. O som era agonizante para os ouvidos dele, chegando a ser doloroso de se escutar. Contorcendo-se no chão do quarto, sempre em silêncio, perto de arremessar a cabeça no pé da cama para nunca mais sentir aquilo atravessar os seus tímpanos novamente, o guri achou estar escutando bilhões de dedos longos e magros tocando e riscando e cutucando o solo em sua direção, como se viessem até ele arranhando com unhas extremamente laminadas e pontudas toda a terra de lá de baixo da fazenda. Sentiu como se pressionassem os dedos num vidro úmido e os mexessem para lá e para cá, trazendo com sis um som irritante e traumatizante a ele. Quis arrancar as orelhas. E quando ele pressentiu que o barulho estava chegando cada vez mais perto e mais forte à sua janela, que os braços o pegariam e o encostariam tantas vezes repetidas, ele se viu deitado na sua cama sob a sua coberta, com os pés esticados e os dedos alongados para fora do edredom.  





Pasmo, com a pele branca e congelada, tremendo dos dedos dos pés à testa áspera que estava, ele ainda escutava zumbidos baixinhos. Como todos fariam depois de tal situação, ele questionou-se se tinha acabado de viver um pesadelo dos piores, e não obteve uma reconfortante resposta. Ele teve certeza que a sua mãe teria uma explicação para isso, como sempre tem. Ainda deitado com os dedos das mãos de fora, ele percebeu que o vidro era um pouco empurrado pela ventania de fora e também que a noite não era mais tão silenciosa, podendo agora distinguir os zumbidos que escutava estranhamente, dos zumbidos dos morcegos, que ainda sobrevoavam os plantios até aquele instante, o que o deixou mais tranqüilo.

De debaixo das cobertas e sobre o colchão sem fronha, esquecendo do que tinha passado parágrafos atrás, ele ouviu mais dedilhados de baixo do seu chão, no pátio do sítio, só que agora mais divagares. O guri não teve reação àquela situação, ele não aguentava mais, então continuou debaixo do edredom, sem piscar e tremendo muito mais do que quando acordara, esperando o pior. Foi aí que, no meio dos dedilhares constantes, mas com intervalos maiores que os dos ocorridos antes, o garoto ouviu o berro de uma ovelha, o que o tranquilizou diante dos dedilhados. Ainda coberto com o edredom sobre a cabeça e corpo inteiro, com somente as pernas de fora, ele se levantou da cama e empurrou as venezianas e levantou o vidro da janela; ao fazer isso, seu coração se acalmou e suas veias voltaram a trabalhar normalmente: à sua frente, ainda de noite, estava iluminado, pelo poste da frente da fazenda, um rebanho amarelado de ovelhas, preenchendo metade do pátio do sítio. Presenciando aquilo de lá de cima, o guri teorizou que o primeiro som que escutara àquela noite foi obra do temporal que ocorria no horário, o qual trouxe tanta ventania com ele que abriu a porta do aprisco do rancho e provocou aquele som decadente, tendo em vista o tempo no qual aquele curral foi construído; libertando assim as ovelhas pelo sítio todo; e eram tantas delas juntas caminhando e se locomovendo ao mesmo tempo, que, levando em conta o medo que o guri àquela hora da madrugada sentia e os milhares de passos simultâneos, ele acabou desmaiando e capotando sobre a sua cama.

Detrás daquele tanto de algodão aclaradamente bronzeado, subindo entre os montes e as colinas verdes-mar frias, o topo do sol surgia junto à manhã. O guri não viu mais nenhum morcego voando sobre a semeadura e percebeu que a lâmpada do poste da frente da roça apagara logo ao levantar do sol. Ainda sendo muito cedo para os trabalhadores da fazendo saírem da pousada e o seu pai acordar do sono, ele aproveitou estar de pé e pôs as botas para descer até o pátio e tentar guiar as ovelhas até de volta ao aprisco de onde escaparam. O garoto não trocou o pijama de antes e permaneceu com o macacão costumeiro, apenas enfiando as pontas das calças para dentro do único par de botas que tinha, os quais estavam com a sola suja de barro do solo de uma das plantações. Para espantar o rebanho, ele iria usar o maior cobertor que tinha e jogá-lo na frente das ovelhas, assustando-as e fazendo-as retornarem os cascos e voltarem ao curral. Como se fosse uma daquelas capas vermelhas, ou toalhas baratas, para os touros de rodeio, só que ao contrário, e sem os touros.

No primeiro andar, depois de descer as escadas remotamente, em silêncio absoluto com os pés e na respiração, ele percebeu a mudança de temperatura da madrugada para manhã e sentiu de longe a geada nos plantios e a umidade na grama do pátio; o céu era azul-claro, e as nuvens se camuflavam lá em cima; as ovelhas pareciam o reflexo delas. À frente da porta, do lado de fora, ele se cobriu da cabeça aos joelhos com o edredom, deixando à mostra a face, somente um quarto da perna, o tornozelo e os pés, que eram mantidos pelas botas. A brisa fria ainda batia nos olhos e no nariz dele, mas isso não o incomodava, e sim o massageava no rosto. Ele atravessou e pisou na grama úmida sem cheiro até o rebanho e, lá na frente daquele branco todo, viu, dentre os montes lá longe, o sol reerguer-se mais um pouco, implicando com os seus olhos e levando as sombras das ovelhas para mais próximas ao seu par de botas. A presença do guri não importou muito para os animais, que permaneceram se alimentando do gramado do campo, normalmente, como se ele não estivesse lá. Do meio do pátio, ele enxergou a mesma baleia que vira horas atrás, que parecia ainda cantarolar perto da praia. Ainda com o cobertor sobre o corpo, o garoto resolveu primeiro verificar a entrada do aprisco e ver se a ventania quebrara qualquer parte do portão àquela noite, nem que tivesse derrubado uma farpinha de madeira.

23/07/2017

Em vez de contornar o amontoado de ovelhas, ele o atravessou pelo meio, como se cortasse o caminho, desviando do tanto de lã, mas sem querer pisando nas bolinhas de fezes daqueles bichos, misturando a terra do plantio com o marrom de merda da sola das botas. Finalmente, quando chegou embaixo do telhado reto suspenso do portão do aprisco, descomprimiu os olhos sob a sombra que o teto fez atrapalhando o sol de tocar o garoto. A porta larga não tinha danos aos olhos do guri, porém tinha sido aberto, possivelmente pela tempestade, o que já tinha suposto. O chão estava lamacento e cheio de marcas de cascos uma em cima das outras. Parecia que ainda era meia-noite lá dentro, para todos os lados estava escuro e tinham pequenos buracos no teto deixando pequenos raios luz entrarem, como estrelas que fortaleciam ainda mais o pensamento do garoto. Quando virava olhar para novamente às ovelhas, ele escutou um gemido do outro lado do portão, de uma voz grossa que parecia tremida. Logo depois o ruído se repetiu mais alto e em seguida mais alto ainda, quando enfim o garoto conseguiu compreender algo.

- Roupas – quando o garoto ouviu, retornou a cabeça para cima do portão e procurou quem pedia.    





                



          


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